Acerca do património quinhentista (e outro) de São Miguel do Outeiro, Tondela.
A recente demolição de uma fachada que possuía uma janela
manuelina, na Rua de Nossa Senhora da Conceição em São Miguel do Outeiro,
Tondela, representou o desaparecimento de 25%, ou seja um quarto, dos conjuntos de janelas manuelinas que existiam no município de Tondela.
O concelho de Tondela actual,
fruto da união de vários antigos concelhos medievais, possui uma longa história de ocupação humana. As
condições edafoclimáticas, ideais para a agricultura e para a pastorícia, cedo
atraíram o homem para o seu estabelecimento nesta região.
Milhares de anos nos afastam desses
primeiros povos pré-históricos que por aqui habitaram. Da herança que nos
deixaram, residem ainda alguns vestígios espalhados um pouco por todo o
concelho, desde exemplos de arte rupestre aos monumentos megalíticos
funerários.
Foram milhares de anos em que
culturas diferentes foram sucessivamente ocupando o espaço, construindo novas habitações ou reconstruindo as antigas ao gosto da sua época e cultura, aproveitando, em grande parte das vezes, os
materiais das construções anteriores.
Hoje, quando olhamos para trás, já
praticamente nada resta das estruturas anteriores à Idade Moderna,
principalmente no que se refere à arquitectura civil, nomeadamente a erudita.
Tondela foi território onde
abundaram famílias nobres desde muito cedo. No centro das pequenas honras e
coutos foram erguidas as suas casas senhoriais.
No território que hoje ocupa o concelho de Tondela, identificam-se, documentalmente, 5 torres medievais, ou Domus fortis, das quais não resta uma pedra. O mesmo se pode dizer do Castelo de Besteiros, pré-nacional.
Se percorrermos atentamente as ruas
dos centros históricos das nossas aldeias - e são muitos - os raros traços mais
antigos que conseguimos reconhecer nas fachadas de alguns edifícios, serão
cronologicamente situáveis nos finais do Séc. XV, inícios do XVI.
Na sua maioria trata-se de
padieiras e ombreiras de portas e janelas, de granito geralmente de grão fino e
cujas quinas foram chanfradas.
Quina chanfrada ou biselada em moldura de janela, em São Miguel do Outeiro
Este tipo de tratamento das arestas, que já vem
do estilo gótico, acompanhou, posteriormente, a evolução para o nosso estilo
tardo-gótico o chamado "Manuelino".
Dos poucos registos do estilo
manuelino em Tondela, os que se conhecem afastam-se esteticamente da
exuberância que vamos encontrar nos grandes centros urbanos e
caracterizam-se pela simplicidade das suas linhas e ausência total de motivos
decorativos, aproximando-se mais da arte hispano-árabe.
Na página virtual da Câmara
Municipal de Tondela consta que os únicos exemplos de janelas manuelinas no
concelho de Tondela são as três janelas maineladas da Casa de São José, em
Parada de Gonta, que se afastam do que acabou de ser dito acerca do estilo característico
dos lintéis manuelinos de Tondela, razão que se prende com o facto de estas
janelas não serem originalmente da referida habitação, tendo sido trazidas do
edifício original, situado na cidade de Viseu, que foi demolido, e posteriormente oferecidas ao
poeta Tomás Ribeiro, proprietário da casa de São José em Parada de Gonta, onde as mandou
aplicar e se encontram até hoje.
Janelas manuelinas da Casa de São José, de Parada de Gonta
Na verdade, os verdadeiros lintéis
manuelinos originais de Tondela, de arcos conopiais, sem motivos decorativos,
estavam presentes, que se conheça, em pelo menos três outros edifícios do
concelho.
Um está numa janela de uma fachada
no pátio Norte do Paço de Molelos e acompanha-o uma porta com emolduramento de
quina chanfrada da mesma época, conjunto que parece estar no seu sítio
original, encontrando-se em bom estado de conservação.
Paço de Molelos
O segundo edifício está em Sabugosa,
contíguo ao edifício que funcionou como discoteca, no cruzamento da Av.
Devaguinha com a Rua Luís Figueiredo. Tratam-se de duas padieiras com arcos
conopiais, presentes nas duas portas de acesso exterior ao andar nobre do edifício,
no qual se abrem três vãos de quina chanfrada ou biselada, contemporâneos das
mesmas. É de referir que estas duas portas manuelinas têm um afastamento entre
ombreiras que já não será o original, uma vez que os arcos das torças já não
ligam com o biselado das ditas ombreiras, o que poderá ter várias explicações.
O terceiro edifício já não existe.
Ficava em São Miguel do Outeiro, no final da Rua de Nossa Senhora da Conceição
e tratava-se de uma fachada em alvenaria de pedra que possuía duas janelas
quinhentistas, uma, tal como nos exemplos anteriores, possuía uma padieira com
arco conopial, de estilo manuelino e a outra era de quina chanfrada, da mesma
época, ou poderia mesmo esconder um arco por trás da caixa de estore.
Janela 1
Janela 2
Antiga edificação
Nova edificação
Pormenor do arco canopial visível.
E assim vai desaparecendo o nosso património, peça a
peça…
Não podemos continuar a permitir que
a nossa herança patrimonial desapareça assim, à vista de toda a gente, dia após dia,
enquanto olhamos serenamente sem fazer nada…
Se existe lugar neste concelho, onde subsiste o maior
número de sinais da arquitectura quinhentista é o lugar de São Miguel do Outeiro, principalmente no
que se refere à arquitectura civil, mas não só…
Na igreja de São Miguel do
Outeiro temos o único túmulo manuelino do concelho, o carneiro armoriado de
Pedro de Figueiredo que possui a única inscrição gótica original de todo o
concelho de Tondela (sendo que existe outra na vila do Caramulo, mas foi para
lá levada no século passado). Para além do túmulo manuelino, possui esta igreja
um interessante conjunto de sepulturas brasonadas, também único dentro das
fronteiras do município.
Ainda nesta localidade temos a quinta de Carvalhiços que
no seu conjunto ainda apresenta alguns traços arquitectónicos do final do Séc.
XVI, sendo de salientar a padieira brasonada com inscrição datada de 1595.
Padieira brasonada e epigrafada da Quinta de Carvalhiços
Mas São Miguel do Outeiro tem muito mais do que isto… Existe
em São Miguel do Outeiro uma rua que se distingue de todas as outras do
concelho de Tondela. Trata-se da Rua de Nossa Senhora da Conceição e seu
seguimento pela Rua do Cimo de Vila. Esta artéria principal de São Miguel do
Outeiro alberga em si, e em pequenas ruelas que dela emanam, um conjunto
habitacional deveras peculiar, quer pela antiguidade das suas habitações - traçando
quase uma história da arquitectura portuguesa desde o Séc. XVI - quer pela sua
diversidade arquitectónica na tipologia dos edifícios.
Quem entra nesta rua, pela parte mais baixa junto ao rio,
começa por se deparar com a antiga Casa da Câmara Municipal do antigo concelho
de São Miguel do Outeiro e, em frente dela, como era normal, ergue-se o pelourinho, sinal máximo da autonomia concelhia. O conjunto de arquitectura
politica, administrativa, judicial e prisional completa-se um pouco mais à
frente, na mesma rua, com o edifício da antiga prisão daquele antigo município.
Quanto a exemplos de arquitectura infra-estrutural, temos,
na mesma rua, um pouco mais acima, um fontanário típico do regime do Estado
Novo (1938).
Também a arquitectura religiosa está bem presente nesta
artéria. Sensivelmente a meio da mesma temos a pequena capela de Nossa Senhora
da Conceição, de 1649, com o seu precioso exemplar de relógio de sol no
campanário, ainda em bom estado de conservação, e, no final da Rua do Cimo da
Vila, a capela de São Pedro (Séc. XVI/XVII?). Saliente-se também a presença em
todo este percurso de vários "nichos da paixão de Cristo" que tanto
se prendem ao culto religioso da Via Sacra no período quaresmal.
No que se refere à arquitectura civil, verdadeiro
património a preservar nesta rua devido às suas características cronológicas e
estilísticas únicas, salienta-se para além do grande grupo de casas (12) com as
características quinhentistas que já referimos, existem também alguns bons
exemplos de arquitectura "Chã" dos finais do Séc. XVI, inícios do
XVII, de arquitectura solarenga maneirista, onde se salienta a Casa do Terreiro;
da arquitectura civil popular (com a existência de habitações e barracões em pedra e tabique),
entre muitos outros exemplos, como se verá no anexo de imagens que acompanha
este texto.
Já é tarde para salvar a anta do Tojal Mau, em Molelos,
destruída recentemente pelo proprietário dos terrenos, ou para salvar a fachada
manuelina de São Miguel do Outeiro. Mas não é tarde para proteger o que ainda
existe, para não apagar a memória de tantos séculos de história, para deixar
alguma coisa para os nossos filhos e netos poderem observar para além do
virtual de um monitor ou papel de uma fotografia.
É preciso acreditar na potencialidade do nosso património cultural
e natural enquanto uma mais valia para as populações locais, sendo dos melhores
pólos atractivos de turismo sustentável que temos para oferecer, e elemento
fundamental, não só para a economia local e regional, mas também para a fixação de população, evitando a desertificação humana que tanto assola o concelho.
Assim, e de acordo com o exposto, e
como tentativa de tentar ajudar na solução do problema de uma forma construtiva,
permitam-me a sugestão das seguintes medidas:
1 - Localizar
urgentemente, negociar e adquirir as cantarias das janelas desaparecidas em São
Miguel do Outeiro, com principal atenção à(s) janela(s) manuelina(s), de forma a poder a
vir a expô-las futuramente no museu ou, ver ponto 3.
2 - Proceder à identificação
e classificação imediata de todas as fachadas com interesse histórico, na
referida artéria de São Miguel do Outeiro (Rua de Nossa Senhora da Conceição e
Rua do Cimo de Vila, não permitindo, desde já, qualquer demolição em património
sinalizável como historicamente relevante.
3 - Aquisição do
edifício em ruínas, que se encontra no largo do final da Rua de Nossa Senhora da
Conceição, início da Rua do Cimo de Vila, casa que ainda possuí, no piso nobre,
um emolduramento quinhentista na sacada que dá para o mesmo largo, e criação,
no mesmo edifício, de um centro interpretativo da história de São Miguel do
Outeiro, "Vila Renascentista", (e porque não da arquitectura civil de
Tondela?), promovendo também a recuperação possível de toda a rua, como
extensão do próprio centro interpretativo, através de material
informativo junto das diferentes peças patrimoniais, mesmo das que ficam fora
deste arruamento.
4 - Proceder à
identificação e classificação imediacta de todas as estruturas com interesse
histórico, em todo o concelho de Tondela, não permitindo, desde já, qualquer
demolição em património sinalizável como historicamente relevante. (Aqui o
recurso a protocolos com universidades, através da criação de estágios dentro
das áreas do património, será uma boa forma de combater a falta de meios
humanos e também de estimular a vinda de investigadores de fora, e assim
promover a nossa História e os nossos monumentos). Posteriormente, proceder à identificação de
todos os proprietários que têm, sob sua protecção, património classificado, de
forma a se poder efectuar acções de sensibilização aos mesmos, dando-lhes a
conhecer a importância do património que possuem e quais os seus direitos e
obrigações em relação ao mesmo.
5 - O envolvimento de toda
a comunidade escolar e educativa na defesa, mas principalmente na educação e
sensibilização para o património dos nossos jovens, através de visitas de
estudo aos diferentes sítios arqueológicos, de trabalhos temáticos sobre o
património local, etc, etc…
6 - Assumir a
verdadeira importância que o nosso património edificado pode ter no sector do
turismo sustentável, olhando para o investimento na salvaguarda do mesmo como
uma "mais valia" em termos de futuro e não um entrave ao
desenvolvimento local.
7 - Porque é importante
que quem venha passar férias ao nosso concelho tenha o que visitar durante toda
a sua estadia, propomos a criação de roteiros históricos turísticos, temáticos,
a serem impressos em papel, ou em app para smartphone, que possam levar os curiosos a percorrer o concelho
em busca de tanta coisa. Parece-me que existe a possibilidade de criar bons
roteiros temáticos, acompanhados de publicação impressa, para exemplos como:
A
- Pré-história e Proto-História,
arte, megalitismo, lagaretas, castros, etc. etc..
B
- Arquitectura religiosa, alminhas, ermidas,
capelas e igrejas.
C
- Arquitectura civil popular e erudita,
solares, casas nobres, casas de agricultor, etc...
D
- Arquitectura vernacular e industrial,
moinhos, canastros, eiras, fornos, etc..
E
- Industria mineira, Feal,
Molelinhos, etc…
F
- Rota dos Antigos Concelhos,
pelourinhos, casas de audiência, prisões, etc.
G
- Rota do vinho, vinhas, adegas,
lagares, alambiques, etc.
H
- Artesanato, olarias, etc.
Estes entre alguns
outros que poderão ser criados.
8 - Promoção de visitas
de estudo organizadas com guia, por inscrição, pelos diversos roteiros criados
no ponto anterior.
9 - Actualização e
correcção dos dados sobre o património visitável do concelho, no site da Câmara
Municipal de Tondela (http://www.cm-tondela.pt/).
10 - Criação e
publicação da, já muito atrasada, Carta Arqueológica do Concelho de Tondela.
Anexo
I - Património de interesse histórico nas ruas de Nossa Senhora da Conceição e
do Cimo de Vila, em São Miguel do Outeiro e artérias secundárias.
A)
Arquitectura civil quinhentista, caracterizada pela decoração mais simples e
popular de todas, com os emolduramentos dos vãos com as quinas chanfradas ou
boleadas, típicas do gótico português.
Casa
1
- Duas janelas de quina biselada, um cruciforme e uma pequena inscrição.
Casa
2
- Uma porta, uma janela e uma sacada de quinas chanfradas ou biseladas.
Casa
3
- Uma janela de quina chanfrada ou biselada.
Casa
4
- (destruída) - Já só restava uma fachada onde
constava uma janela manuelina, uma janela de quina chanfrada ou biselada e uma
pedra inscrita(?).
Casa
5
- Em perigo de ruína, carece de classificação,
protecção e intervenção. Casa que poderia ser adquirida e transformada
em centro interpretativo, conforme o ponto 3 na carta em cima. Presença de
sacada de quina biselada, no primeiro piso, virada ao largo. Fogueiras de Natal à sua frente, durante dias, não ajuda nada à sua conservação.
Casa
6
- Conjunto de 3 janelas de quina biselada.
Casa
7
- Restos de quinas biseladas nas ombreiras da porta da rua, que sofreu
alterações na padieira, provavelmente em 1730, conforme atesta o cronograma
epigrafado na mesma, juntamente com um cruciforme. Janela de emolduramento de
quina biselada.
Casa
8
- Casa na Rua da Cal. Porta de quina biselada, no primeiro piso da casa.
Casa
9
- Rua da Cal. Porta de quina biselada no piso térreo.
Casa
10
- Em perigo de ruína, carece de classificação,
protecção e intervenção. Embora seja uma casa com elementos
principalmente seiscentistas, ainda possui uma porta de quina biselada,
quinhentista, com acesso pela Rua da Cal. Poderia ser também uma hipótese para
o centro interpretativo.
Casa
11
- Presença de emolduramento biselado no primeiro piso da casa.
Casa
12
- Rua do Cimo de Vila, já perto da capela de São Pedro.
Casa
13
- Casa do Terreiro. Presença de uma sacada com emolduramento de quina biselada.
B)
Arquitectura civil seiscentista.
Casa
1
- Já referida na alínea A) como Casa 10 - Janela de moldura seiscentista.
Casa
2
- Rua do Cimo de Vila - Porta seiscentista.
Casa
3
- Duas portas e duas janelas seiscentistas.
Casa
4
- Fachada de casa em muito mau estado, na Travessa de Nª. Srª da Conceição.
Janela seiscentista com cruciforme bastante acentuado.
Casa
5
- Casa do Terreiro (já referida na alínea A) como Casa 13) - Portal seiscentista
de acesso à casa.
C)
- Arquitectura civil setecentista.
Casa
1
- (Já referida nas alíneas A) e B)) - Casa do Terreiro, com capela dedicada a
Nossa Senhora do Pé da Cruz, construída em 1661 e
reconstruída em 1741. Fachadas contemporâneas da reconstrução da capela. Casa
brasonada.
Escudo com as armas de Abranches, Lobos e Costas.
D) - Arquitectura civil oitocentista.
Casa 1 - Em perigo de ruína, carece de classificação, protecção e
intervenção. Na Rua de Nª Srª da Conceição. Casa abastada com
características do Séc. XIX, com uma porta que mostra um magnifico trabalho de
madeira, muito ao gosto romântico.
E)
- Arquitetura civil popular e vernacular. (são
muitas casas)
E)
- Arquitectura politica, administrativa, judicial e prisional.
1 - Pelourinho do
antigo concelho de São Miguel do Outeiro. 1268 - foral concedido por D. Dinis ao couto de
São Miguel do Outeiro; 1762 - criação do concelho; 1766 - data epigrafada no
fuste, poderá indicar a data de edificação; 1855 - extinção do concelho; 1916 -
data epigrafada no fuste e que se refere a uma intervenção; 1989 - um acidente
deitou por terra o pelourinho, fragmentando o remate.
2 - Paços do antigo
concelho de São Miguel do Outeiro.
3 - Antiga prisão
do extinto concelho de São Miguel do Outeiro.
F) - Arquitectura
infraestrutural.
1
- Fonte de São Miguel do Outeiro (1938)
G) - Arquitectura
religiosa.
1 - Capela de Nossa
Senhora da Conceição (1649).
Campanário com relógio de sol.
3 - Nichos da
Paixão de Cristo.
Via sacra ainda com muitos nichos, equivalente à que existia em Tondela e da
qual já só resta o nicho do Solar do Rolo. O percurso passa na referida artéria
onde se encontram 4 destes nichos..
Outro
património de interesse em São Miguel do
Outeiro (localidade).
1 - Igreja de São
Miguel.
Destaca-se o arcossólio quinhentista de Pedro de Figueiredo e o conjunto de
sepulturas armoriadas.
2 - Fonte de Chafurdo..
3 - Capela do Calvário.
4 - Capela de São Brás.
5 - Quinta de
Carvalhiços.
6 - Nichos de
santos e alminhas